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Aquaman, mais que rei: herói? Ou produto? Nossa repórter foi à pré-estreia

Aquaman é um blockbuster para pensar sobre filmes de super herói na cultura pós-digital

Quando Aquaman foi criado por Paul Morris e Mort Weisinger e lançado na edição número 73 da More Fun Comics, em 1941, o mundo enfrentava a Segunda Grande Guerra. Nos quadrinhos da DC Comics, o rei dos sete mares lutou contra os nazistas.

O contexto era de bipolarização, extremismos, racismo e xenofobia. A indústria cultural e a preocupação com os impactos da intervenção humana sobre o meio ambiente logo passaram a ocupar o centro de debates naquela época. A cultura popular estava ávida por figuras com super poderes para trazer esperança e acalmar anseios e conflitos sociais.

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Nosso mundo atual dialoga intensamente com isso?

A esse panorama, acrescentamos a era pós-digital e a sociedade em rede, a cultura da convergência e a narrativa transmídia. Pronto! Temos Aquaman, o filme dirigido por James Wan, com estreia oficial no Brasil em 13 de dezembro. Eu assisti à pré-estreia, que me levou a pensar no quanto a História é mesmo cíclica.

Aquaman é uma espécie de semideus, de herói na definição clássica, embora repaginada. Filho da rainha Atlanna, uma entidade marinha, com um explorador humano do mundo submarino, Arthur Curry herdou do pai a afinidade com as profundezas oceânicas. Da mãe, a capacidade de respirar debaixo d’água e de nadar em altíssima velocidade, além de conseguir se comunicar com seres do mar.

Mas ele é fruto de um amor proibido — um bastardo!, o suficiente para enchê-lo de conflitos: sentir-se indesejável e deslocado. Viver à deriva entre a terra e o mar, como “cidadão de ambos, embora não se sinta em casa em nenhum”.

Com essa apresentação do protagonista, já podemos falar sobre o roteiro. Sem novidades. Trata-se de mais um produto da indústria cultural a seguir exaustiva e automaticamente a versão hollywoodiana da jornada do herói de Joseph Campbell, a luta do bem contra o mal, o amor enjoado e implicante entre mocinho e mocinha. O fato de Aquaman ser alvo de deboche nos quadrinhos transfere-se para a tela cinematográfica em cenas bobas que, no máximo, arrancam um riso de canto de boca com humpf !

Se há mérito narrativo, está nos temas sugeridos. O sentimento de não-pertencimento do protagonista coincide com o da pessoa migrante, e a questão da migração é central nos dias de hoje. Além disso, Aquaman é chamado várias vezes de vira-lata, o que foi traduzido nas legendas para mestiço — e nos faz pensar em racismo.

A revolta furiosa do Mestre dos Oceanos, líder de Atlantis, contra a poluição dos mares traz à tona os problemas do Antropoceno, esta nossa era em que o ser humano detém controle destrutivo sobre o planeta. A rivalidade entre os reis submarinos é mais um lembrete a respeito da gananciosa condição humana: é tudo questão de disputa de poder. Uma outra cena desastrada e sem porquê não deixa de ser pretexto para uma discussão sobre privacidade, celebridades e redes sociais on-line.

Atlanna (Nicole Kidman), Aquaman (Jason Momoa), Mera (Amber Heard)

Por outro lado, impossível não observar como algumas representações controversas são repetidas e reforçadas. Aquaman é um macho alfa, branco, fortão, fechado e meio troglodita, meio ogro, que resolve tudo com luta corporal, infalivelmente. O elenco é prioritariamente masculino. As mulheres com papéis centrais, mãe-rainha e par romântico-princesa, até sabem lutar, se viram, têm autonomia, mas são duas sex symbols, coadjuvantes no palco do herói. A eterna Mary Poppins, Julie Andrews, dá voz feminina ao monstro mais temido e horrível dos sete mares. Significa.

(Sobre isso, encontrei um trabalho de mestrado interessante defendido na Universidade do Illinois: The gendered superhero: an examination of masculinities and femininities in modern age DC and Marvel Comic Books).

Heróis da convergência e cinema de energia

Ainda quanto à qualidade do filme, há que se observar como os efeitos visuais e sonoros são privilegiados em detrimento da história. Os movimentos de câmera são vertiginosos, dão a ideia de que realmente estamos a pular do alto de um abismo direto para as profundezas do mar, mas sem descanso! E os sons não reverberam apenas nos nossos ouvidos; sentimos aquele impacto sonoro vibratório no corpo inteiro, quase o tempo todo, principalmente nas cenas de luta. Se você gosta de montanha russa, talvez sinta satisfação. Eu fiquei tonta, de verdade.

É como Roger Odin problematiza em um livro sobre a ficção cinematográfica: algumas narrativas têm se tornado serviçais dos níveis plástico, gestual e musical, num deslocamento do sentido para a energia, com mais sensação e percepção que interpretação e emoção. Como se fossem feitas para um espectador mais interessado em ser sacudido do que em se comover. O lado positivo disso, no caso de Aquaman, é a beleza estética das cenas no fundo do mar. Imagens fascinantes.

Sob a perspectiva de mercado, Aquaman é um case rico para estudo de marketing de conteúdo e entretenimento em narrativa transmídia do gênerosuperhero. Para lidar com a concorrência entre DC e Marvel, a divulgação pré-estreia contou com ações presenciais, como um game no site oficial do filme e um stand na Comic Con para convidar fãs a conhecerem o boneco do herói. Além disso, na ideia da cultura participativa, foram publicados um vídeo com as reações de fãs e um especial em stop motion com uma aventura marinha, em que os personagens principais são os bonecos de Aquaman, Mera e Mestre dos Oceanos, entre outros. O uso da hashtag #dckids mostra a preocupação em atingir públicos-alvos de diferentes faixas etárias.

Referência não é só coisa de filme de super herói

Outros assuntos a serem discutidos a partir de Aquaman são o interdiscurso e a cultura do remix, com muitas referências culturais. Dos arquétipos e mitologias, além do herói, podemos identificar a criança solitária sem contato materno, os irmãos inimigos como Caim e Abel, o rei Artur de Camelot, o deus Netuno/Poseidon.

Pinocchio (1940), de Walt Disney

O diretor James Wan refere-se a filmes também nas soluções de roteiro, como a história de Pinóquio e a baleia. Metropolis Blade Runner são visualmente mencionados na composição do mundo submarino. Afinal, Atlantis era futurista, muito mais avançada que a civilização terrestre.

Metropolis (1926), de Fritz Lang
Blade Runner (1982), de Ridley Scott

Há ainda o reaproveitamento de hits musicais dos anos 1980, como a clássica canção Africa, de Toto, que já foi utilizada na trilha sonora de outros filmes, como mostra o vídeo abaixo.

Em termos cinematográficos, o filme apresenta pontos positivos e falhas. Mas o mais importante é que revela a complexidade desse universo narrativo conectado, comercial, em rede, mergulhado nos dilemas pós-digitais do século 21. Tão intrigante quanto o mar, misterioso mar.

Por Carolina Assunção*

*Jornalista, pesquisadora, professora. Doutora em Linguística do texto e do discurso (UFMG) com pós-doutorado sobre narrativas audiovisuais (CNRS-França) –

  • Repórter assistiu à pré-estreia a convite da Espaço/Z