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Opinião: catedral, fake news e o homem moderno diante do acaso

Pouco mais de uma hora depois da BBC anunciar o incêndio na catedral de Notre Dame, um tipo de conteúdo lotou as páginas das minhas redes sociais: as teorias de conspiração. Os usuários inconformados ou diziam que era obra de terroristas ou diziam que o governo francês foi quem iniciou a chama. Poucos se conformaram com o fato de ter sido tudo um acidente. Isso apenas serviu para comprovar o que eu já pensava há um tempo sobre como as pessoas reagem a grandes acidentes: o homem da crise da modernidade (erroneamente chamado de pós-moderno, como se a aceleração do tempo tivesse acabado) não é capaz de lidar com o fato de que não é (e nunca foi) plenamente capaz de controlar sua própria realidade.

A coincidência não existe para o homem moderno. Hipóteses naturais são sempre descartadas diante da possibilidade do acidente servir ao interesse de alguém, e a imprensa é tratada com desconfiança quando não consegue provar que o acaso aconteceu aqui agora, independente disso ser ou não possível.

Não faltam exemplos de situações em que as coberturas de longo prazo foram alvos de teorias de conspiração. Após a queda do avião que transportava o ministro Teori Zavascki, o público custou para engolir a possibilidade de ter sido de fato um acidente até que a investigação fosse arquivada. No caso do atentado contra Jair Bolsonaro em setembro de 2018, muitos ainda se recusam a acreditar que a facada foi um ataque isolado cometido por um doente mental. Mesmo com a Polícia Federal considerando essa como a hipótese mais forte, ainda preferem acreditar que foi algo planejado e com o interesse de terceiros envolvidos. E ainda há aqueles que não conseguem acreditar que o atentado foi verdadeiro, ou que a equipe de Bolsonaro não esperava aquilo.

Afinal, como explicar a um homo sapiens metido a homo Deus que sua máquina capaz de voar a altitudes estratosféricas pode falhar, mesmo quando há alguém importante do lado de dentro? “Não pode ser coincidência, alguém sabotou o avião de Teori Zavascki”, vai responder o homem da crise da modernidade. Como explicar a ele que a mesma eletricidade que faz os aparelhos de sua casa funcionarem quase que como mágica, que circuitos também podem falhar e queimar, fazendo com que um prédio sem as devidas inspeções de segurança seja engolido pelas chamas? “Não pode ser, alguém precisa ter queimado o Museu Nacional. Aquilo não pode ter sido um acidente. Havia algum interesse naquilo.” Explicar que os reparos de uma igreja deram errado e a estrutura pegou fogo? “Só pode ser obra de muçulmanos. Ou do próprio governo francês!”

A inconformidade com a falta de controle da realidade também se aplica a fenômenos humanos. Afinal, como explicar os resultados das eleições americanas de 2016 a um ser que, de tão inconformado por não ser capaz de controlar a realidade, chega ao ponto de se isolar em bolhas sociais em que todos compartilham uma percepção em comum; de que seu pensamento não bate com o da maioria das pessoas e que estas elegeram o candidato que esse ser odiava? “Isso está errado, as urnas só podem ter sido fraudadas. Tenho certeza de que os russos interferiram nas eleições!”

Explicar nas eleições brasileiras de 2018 a um homem que, como dizia McLuhan, foi capaz de estender seu sistema nervoso na forma de meios de comunicação instantâneos, de que informações que passam por esses meios ainda possuem ruído e que cálculos de probabilidade podem falhar até mesmo em momentos eleitorais? “Esses cálculos de intenção de voto da Datafolha são tudo mentira! Querem prejudicar o meu candidato!”. Nem o jornalismo escapa disso: “Os jornais retrataram uma realidade diferente daquela que eu imaginava? Mostraram algo que não bate com a minha opinião? Fake news! Essa mídia não presta!”

O homem da crise da modernidade ficou tão acostumado a pensar que é dono de seu próprio destino, que se esqueceu que existe o acaso. O risco de estar errado, de ter que lidar com variáveis fora de seu controle, o deixa tão apavorado quanto o homem da antiguidade ao pensar ter despertado a ira dos deuses. O homem moderno se sente perdido no mundo ao lidar com o fato de não ser ele mesmo um deus, e vai fazer de tudo para negar essa realidade. Até mesmo tentar mentir para si mesmo, inventando uma explicação humana para tudo.

Por Lucas Neiva

Sob supervisão de Luiz Claudio Ferreira