Leia mais

Mais lidas

Útimas notícias

Por trás da máscara de Elvis: como aposentado venceu anemia falciforme

São 10h30, quarta-feira, um dia de abril de 2018, e o céu está nublado em Brasília. Sentado em uma cadeira de madeira com um dos braços sobre a mesa de jantar, um homem de cabelos pretos com fios grisalhos explica a convivência com uma doença que podia tirar a vida dele a qualquer momento. Com a respiração abafada por uma máscara cirúrgica, Elvis Magalhães de 51 anos de idade, é chaveiro aposentado, escritor de dois livros (um dos quais foi premiado na Bienal de 2014), o fã do Legião Urbana e morador do Guará II no Distrito Federal. Ele é casado há 29 anos com a professora Márcia Cristina com quem teve o filho Gabriel de 28 anos.

Desde os dois anos, Elvis conviveu com transfusões de sangue e internações por dores imensuráveis (a mais longa o deixou 2 meses no hospital para tratar uma pneumonia). Tudo isso em decorrência da anemia falciforme, uma doença que se não tratada pode levar o portador a graves complicações, como o acidente vascular cerebral (AVC), segundo a hematopediatra Silvana Fahel. O próprio Elvis, por conviver diretamente com várias pessoas que têm falciforme, conhece algumas que tiveram derrame cerebral em decorrência da doença.

Recuperando-se de um transplante de fígado em decorrência do excesso de ferro no órgão, mas se esforçando para falar o mais alto que podia, seu olhar brilhava ao relembrar momentos de dor e alegria vividos na infância, adolescência e vida adulta. Elvis Magalhães se define como um “milagre improvável da medicina brasileira”. Atualmente, viaja o Brasil e o mundo em conferências médicas a convite do Ministério da Saúde. É um dos fundadores da ABRADFAL, Associação Brasiliense de Pessoas com Doença Falciforme, instituição que luta pela democratização e por melhores condições de tratamento para os portadores da doença no Distrito Federal. Ele resolveu abraçar a causa porque foi um teste para medicina. “Se deu certo para mim, por que não vai dar certo para os demais, hoje a minha bandeira é a falciforme”.

Tempo de vida

Interior de Goiás, março de 1966, Maria Policena, quatro meses antes do nascimento de Elvis, enterra a pequena Eliane, aos dois anos de idade, com os sintomas clássicos da Anemia falciforme, a pele esbranquiçada e os olhos amarelados, o mesmo mal que seria diagnosticado no pequeno Elvis. Com pouco mais de um ano de vida, Elvis é diagnosticado com Anemia Falciforme, e a luta que levaria 38 anos para ser vencida, começava com a dura sentença proferida pelo estado de saúde, com duras palavras do médico aos pais de Elvis – o filho não passaria dos cinco anos de vida. De mudança do interior de Goiás, a família busca uma chance de sobrevida para Elvis em Brasília. Apesar de todas as limitações impostas os anos foram se passando e a expectativa de vida foi aumentando. O tempo foi um amigo para Elvis, que quando tinha 12 anos de idade, se deu conta que tinha uma doença grave. Ele recorda que a adolescência foi bem difícil entre as muitas idas e vindas ao hospital. A vontade de ter uma adolescência normal, onde pudesse brincar na rua sem preocupações era o que ele mais queria. Mesmo com as limitações que a doença colocava a sua frente, ele não deixava de brincar. “Eu sabia que se eu fosse jogar futebol eu iria pagar o preço depois”. Um simples futebol acabava em uma internação de no mínimo uma semana. Contrariando as “previsões” do fim da sua vida, Elvis casa-se com Márcia. E em uma consulta de rotina, ao noticiar que sua esposa estava grávida, recebeu o pior ultimato que poderia ouvir de uma médica. “Você é louco?! Você quer deixar uma mãe viúva?! Você não vai passar dos 25 anos de idade!”, relembra.

Brasília, 18 de junho 1988. A banda Legião Urbana se apresenta na capital, e pela milésima vez, Elvis tinha ido ao HSU (Hospital dos Servidores da União). Enquanto aguardava ser atendido, ele sabia que estava encrencado: tinha uma ferida no tornozelo que precisaria de um curativo profundo, ou até mesmo uma internação. Ele entrou mancando no consultório do médico e de lá, foi direto para a emergência que conhecia muito bem. No outro dia, a médica de plantão propôs um tratamento mais agressivo para fechar a úlcera que já acompanhava Elvis há 2 anos. Para isso deveria seguir internado por tempo indeterminado. “Não tive como contra-argumentar, era necessário o tratamento pois a úlcera além de dolorosa e profunda, apresentava um odor. Seria apenas uma questão de tempo até amputação” relembra.  Ainda assim, Elvis não podia abrir mão de ouvir Legião Urbana ao vivo e pediu para médica uma liberação para ir ao show. Após muita insistência, conseguiu permissão para assistir a banda de rock sob algumas condições: deveria ficar na frente do palco e quando o show acabasse ele teria que voltar imediatamente para o hospital.

Em 1988, o show, tão marcante para história da capital, marcado por conflitos na plateia e entre Renato Russo e o público, foi a última vez que o Legião tocou para os brasilienses. Houve uma badernaço no estádio que se estendeu pelo eixo monumental e várias pessoas ficaram feridas. Mas para Elvis, que ainda teve que lidar com a doença e a dor, o que ficou foi a recordação do sonho de ver sua banda preferida cantar ao vivo. “Foi a melhor noite da minha vida”.

A possibilidade de cura

Hospital Universitário de Brasília, 1998. A anemia falciforme era uma doença até então sem cura, todas as direções apontavam para uma vida de convivência com as dores, com as úlceras e as várias transfusões, até que Elvis é encaminhado pelos médicos Sérgio Mesiano e Jorge Vaz a fazer um exame para verificar se um dos irmãos seriam compatíveis num possível transplante de medula óssea. O resultado foi animador, o irmão Elder Magalhães é 100% compatível. Do exame de compatibilidade até as consultas para o possível transplante foram longos seis anos.

Maio de 2005, Elvis está no Hospital das Clínicas em Ribeirão Preto, aguardando os exames necessários para autorização médica para o transplante de medula óssea. No consultório, Elvis é alertado pelos médicos que o transplante seria muito arriscado. O excesso de ferro no fígado por causa das muitas transfusões de sangue tinha comprometido o órgão e a quimioterapia poderia levá-lo a óbito. Ele preferiu arriscar a morte do que continuar vivendo como estava, “Onde assino os papéis me responsabilizando pelo transplante?”, relembra Elvis em objeção à orientação da equipe que logo mais acatou a decisão pelo transplante da medula óssea.

A medula óssea é o órgão responsável pela produção do sangue e seus componentes, as plaquetas, os glóbulos vermelhos e os glóbulos brancos. “No transplante de medula óssea, ocorre a troca da fábrica do sangue. Sai a fábrica ruim e é transplantada outra boa” explica Elvis.

Até 2005, os transplantes de medula óssea para a cura da anemia falciforme só tinham sido realizados em uma jovem de 18 anos, em Ribeirão Preto. Elvis foi o transplantado com falciforme mais velho do mundo, aos 38 anos. “Saí de uma condição em que tinha que fazer transfusões a cada quatro dias, fazer curativos diários por causa de úlcera no tornozelo e priapismo (ereção peniana dolorosa involuntária), lamenta. “Imagine passar 38 anos enfrentando essa doença e, de um dia para o outro, sou transplantado e simplesmente passei os primeiros seis meses após o transplante sem acreditar, nunca mais tive crise de dores, nunca mais tive úlcera nem nada”. “É uma vida totalmente diferente e é isso que eu sonho para todos aqueles que portam a doença.”, declara. Nos dias de internações, as palavras de Renato Russo o acompanhavam: ele aproveitava os momentos para ler. A música “Mais uma Vez” do cantor, define sua trajetória de vida “Quem acredita sempre alcança”, cita. Segundo a médica Silvana Fahel, a anemia falciforme é uma doença genética caracterizada pela produção de uma hemoglobina anormal chamada hemoglobina S. “As pessoas que herdam a mutação genética de um dos pais (heterozigotos) têm traço da doença, e aqueles herdam a mutação dos DOIS pais (homozigotos) têm anemia falciforme”.

Por Karol Lima

Fotos: Arquivo pessoal