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Um passo de cada vez: ele recuperou a auto-estima após cirurgia de estomia

 Receber a notícia que irá usar uma bolsa coletora de excrementos fecais externa ao seu corpo não é fácil para muita gente, mas não foi o caso do empregado público, Guilherme Caetano Lucas, de 45 anos, viu na estomia uma chance de cura. Diagnosticado com retocolite ulcerativa, uma doença inflamatória intestinal, Guilherme foi submetido a uma cirurgia de estomia, que consiste em uma incisão na área abdominal utilizada para expelir fezes numa bolsa. A única solução para parar as crises de ir frequentemente ao banheiro foi a retirada do intestino grosso, local onde a doença estava instalada.

      Nascido em Uberaba (MG), filho de um dentista e de uma professora, passou a infância e o começo da adolescência em Patos de Minas (MG), a 430 km de Brasília.  Um acontecimento marcante para o jovem foi a separação dos pais quando ele tinha 14 anos. Diante de toda a situação, com 17 anos, teve que ir morar em São Paulo com o pai, para começar a vida adulta e ter mais oportunidades.

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De volta à terra natal, após três anos, em Uberaba, conheceu Ana Paula, aos 22 anos, em uma loja de discos onde ele trabalhava. A jovem morava em Boa Vista (RR), mas após a morte do pai, se mudou para Uberaba. Conheceram-se através do primo de Guilherme e se aproximaram pela afinidade musical. Um encontro ao acaso e já se passaram 23 anos, e o relacionamento está cada dia mais forte. Foram dois anos juntos, até que um grande desafio preocupou o jovem casal: uma gravidez inesperada.

      Com a chegada da primeira filha, Vitória, aumentaram as responsabilidades. Ana Paula com 18 anos e Guilherme com 23, ainda no início da graduação em psicologia, sem muita estrutura, iniciaram uma família. Construíram uma casa e, com dificuldades, acabaram se adaptando à situação. Nada foi programado e não havia como fugir. Era tempo de transformações, foram necessárias adaptação e força.

      Após cinco anos, Guilherme começou a trabalhar como psicólogo, de forma autônoma. Foi uma fase profissionalmente instável, pois não tinha experiência. Ele ainda tinha o agravante de ter que sustentar uma nova família, o estresse e preocupação eram inevitáveis. Ainda assim, no auge da juventude, sem perceber, descuidou da alimentação e dos exercícios físicos, o que afetou a saúde.

      Com um estilo de vida estressante e pouco saudável, os problemas começaram a surgir. Ele conta que “sempre” teve problemas gástricos, devido a questões genéticas. A principal surpresa veio aos 40 anos, quando fez uma viagem para Sacramento (MG), em janeiro de 2013.  Sentiu um desconforto no estômago, que poderia ser algo relacionado com a gastrite. Em princípio, não teve grandes preocupações, pois já tinha um histórico da doença. Durante a viagem, surgiram sintomas parecidos com uma dengue.

Ao retornar a Brasília, com tratamento em casa, os sintomas diminuíram, mas o desconforto no estômago persistia. Procurou um primeiro atendimento médico com um gastroenterologista (especialista em doenças gástricas e do fígado) amigo de Guilherme, que não identificou nenhuma alteração significativa durante a endoscopia. Por isso, foi encaminhado para o coloproctologista (especialista em doenças do intestino grosso, reto e ânus) para fazer tratamento. O início da medicação começou com antibióticos, exames de sangue e colonoscopia, um exame específico para identificação de doenças no intestino grosso. Os custos desses procedimentos eram bastante onerosos. Nem Guilherme e nem os familiares tinham condições de arcar com a despesa, o que o impediu de continuar com o tratamento. Após explicar a situação ao médico, foi dado um laudo e um encaminhamento para que ele pudesse prosseguir no sistema público de saúde, mas Guilherme não conseguiu atendimento. A situação piorou, chegou a evacuar de 15 a 20 vezes por dia, o que levou a uma hemorragia durante uma crise forte. Só assim conseguiu a internação no pronto socorro do Hospital Universitário de Brasília (HUB) em maio de 2013.

      Iniciados os procedimentos para internação, a equipe de gastroenterologia e de coloproctologista assumiram o caso para fechar uma investigação precisa da doença. Além da falta de recursos do hospital, havia divergência entre os médicos em relação ao diagnóstico e medicação. Fizeram várias tentativas de tratamento e todas fracassaram. A doença se desenvolvia de forma rápida e intensa, e o organismo de Guilherme se debilitava ainda mais.

Após 30 dias de internação, em junho, foi diagnosticado com retocolite ulcerativa. Sem sucesso nos tratamentos, foi necessário fazer uma cirurgia para retirar o intestino grosso. Quando foi realizado o último exame para constatar a gravidade da doença, era grave. Guilherme foi operado na emergência e, segundo os médicos, só tinha 10% de chances de vida.

       O pós-operatório foi um período difícil. Ele perdeu 36 kg. Estava magro ao extremo e mal falava devido a magnitude da cirurgia. Houve cortes profundos na área abdominal, o que levou a formação de muito pus. Ficou mais 30 dias internado devido ao grande quadro infeccioso que adquiriu dentro do hospital. Foi um período de sofrimento para ele e a família. Quando voltou para casa, houve estranhamento da parte filha, que não sabia da gravidade de seu estado, e de “Chocolate”, o cachorrinho da família que não o reconheceu depois de uma grande perda de peso.

      Ele afirma que o uso da bolsa de estomia não o incomodava porque o importante para ele era “estar vivo”. Porém, o período de adaptação foi lento. Não conseguia fazer a fixação da bolsa na pele, o que causava vazamentos e queimaduras na região. A dificuldade de achar uma prótese adequada ao relevo do seu abdômen era grande. Precisava experimentar diferentes bolsas que obtinha com os profissionais de enfermagem, trocava de técnica, tipo e de placa, mas nada resolvia. Demorou para achar uma adequada à sua situação para viver com qualidade. No dia a dia, passava por constrangimentos. A bolsa se soltava e sujava a roupa. As pessoas, por falta de informação, quando viam, ficavam chocadas, assustadas e com medo. Achavam que ele andava armado de revólver, devido ao volume aparente na camisa, causado pela bolsa. “Eu ficava muito mal porque a bolsa não funcionava. Se ela não funciona, ela descola, suja a sua roupa. Já estive em lugar cheio de gente e a bolsa descolou, me sujou e sujou as pessoas. Você passa esse tipo de vergonha”. Para se recuperar, Guilherme ficou dois anos recluso, sem trabalhar e distante das pessoas, por causa da dificuldade da adaptação A família ajudou a cobrir as despesas, já que a Ana Paula teve que fechar o brechó que tinha em Vicente Pires para cuidar do marido doente.

Novos amigos

 

      Diante desses problemas de adaptação, Guilherme procurou a Associação dos Ostomizados, no HUB, para pedir orientação e ajuda. Passou a participar ativamente dos encontros, churrascos e comemorações, fazendo bastante amigos e chegando a ser vice-presidente no final de 2015. Inserido nesse contexto de grupo de apoio e na companhia de pessoas em estados semelhantes, houve uma transformação interna. Via na bolsa a esperança de continuar vivendo. Começou a fazer atividades mais leves, caminhadas e pequenas corridas.  E assim, saia de casa e passou a estudar para concurso, para se ocupar. Prestou o da Companhia Elétrica Brasileira e foi aprovado. Assumiu em maio de 2015 o cargo de Assistente Administrativo.

      Atualmente, Guilherme encontra-se com a doença em situação estável se prepara para o processo de reconstrução do sistema intestinal e para fazer uma reversão do estoma. A família, que atualmente já se acostumou com a bolsa, teme que a reversão possa acarretar a perda de qualidade de vida que Guilherme conquistou.  Após tantos processos de adaptação intensos (a separação dos pais, o nascimento da filha e a doença), ele se prepara para um quarto: a vida após reversão do estoma. Um passo de cada vez.

 

Legislação aponta estomia como deficiência

 

A Lei Federal 5.296, de 2004, caracteriza aos estomizados o amparo dos direitos das pessoas com deficiência. O conceito de uma pessoa estomizada na lei, é aquela que foi submetida a uma intervenção cirúrgica que cria um estoma (abertura, ostio) na parede abdominal, para adaptação de bolsa de coleta; ou seja, realizou um processo cirúrgico que visa à construção de um caminho alternativo e novo na eliminação de fezes para o exterior do corpo humano.

Em 2009 foi aprovada, pelo Conselho Nacional de Saúde, uma portaria que regulamenta a implantação de serviços de atenção e saúde das pessoas estomizadas em todo o território brasileiro no âmbito do sistema público de saúde, o SUS. Tanto a bolsa coletora e outros materiais são fornecidos pelos hospitais públicos e pelos planos de saúde. No Brasil, 43 associações de estomizados prestam mais informações sobre atendimento e adaptação a essa condição.

Por Breno Algarte