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Diaristas: elas tinham sonhos de futuro, mas convivem com a realidade do passado

A doméstica Karla Silva sai de casa às 7h30 em Santo Antônio do Descoberto (GO) e retorna às 20h. A cada dia, ela trabalha em um lugar. ”No momento em quatro casas: Samambaia, Águas Claras, Park Way e Taguatinga. Mas, não todos os dias. Seria melhor trabalhar sempre pois eu tenho um neném e três filhos”. Histórias  como a dela mostram a realidade de diaristas para quem a nova legislação da PEC das Domésticas (publicada há seis anos) não ajuda. Com um perfil predominantemente feminino e afrodescente (80%, segundo pesquisa do governo do DF), como é o caso de Karla, o trabalho doméstico é preenchido pela desigualdade e pela estrutura social criada após a abolição da escravidão no Brasil, segundo afirma a pesquisadora em política social Marjorie Chaves.

Segundo a professora, o trabalho doméstico é uma das principais portas de entrada de mulheres negras no mundo do trabalho. Mas não foi o começo de vida que Karla sonhou. ”Quem sabe um dia eu possa fazer uma faculdade a qual eu sempre tive vontade, mas nunca a oportunidade”. Ao perguntar à Karla Isabel, diarista de 31 anos, qual curso ela gostaria de fazer, ela responde: ”Engenharia Civil, porque acho bonito fazer a planta dos projetos, muito lindo. É muita inteligência”.

Hoje em dia, esse plano encontra-se distante de Karla. Mãe solo, que trabalha como diarista há quatro anos para cuidar do filho mais novo. Um mora com o pai da criança e o outro com a irmã. Karla ainda não tem condições ou disponibilidade para cuidar de todos. Ela leva o filho de três anos de idade para o trabalho.

Legado da escravidão

A professora Marjorie Chaves entende que os contratos ou acordos de trabalho no ramo doméstico espelham relações de exploração que estão nas raízes históricas do país. ”As mulheres africanas de descendência africana se tornaram as principais responsáveis pelo trabalho do lar. Ou seja, todo trabalho de cuidado com a família branca era de responsabilidade das mulheres negras e isso não mudou. Mesmo após 131 anos da abolição esse dado ainda continua informando como se organiza a distribuição de ocupações no Brasil”, explica a pesquisadora.

Quanto ao cenário em que prevalece a ocupação de mulheres, a professora explica que não houve avanços  em relação à divisão sexual do trabalho. “Há suposição que existem tarefas específicas para homens e mulheres e que hierarquicamente, o trabalho dos homens vale mais do que o das mulheres. Nesse sentido, o trabalho doméstico tanto remunerado quanto o gratuito fica como uma responsabilidade das mulheres como se elas tivessem nascido com um dom específico para esse trabalho. Ou seja, elas são as maiores responsáveis pelo trabalho doméstico em qualquer circunstância e ele não é contabilizado como um trabalho. Isso significa que as mulheres, de forma geral, trabalham muito mais horas do que os homens”, afirma a professora.

Diarista

Ainda de acordo com o último boletim da Codeplan, é apresentada a novidade da ampliação do número de diaristas após a PEC, alcançando 35,3% do total, em 2017, contra 33,1%, em 2016. É importante destacar o fato de que essas profissionais vivem em meio à instabilidade e precariedade. Além da remuneração exclusivamente diária, são exceções as que possuem direitos sociais trabalhistas. ”A grande maioria das diaristas trabalham informalmente”, afirma a diretora do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas, Samara Regina.

Segundo o levantamento, o crescimento das diaristas pode estar associado não somente pelas medidas adotadas pelos empregadores, no sentido de conter ou reduzir gastos, mas também “pelas dificuldades das trabalhadoras de encontrar trabalho em outros segmentos da economia”.

“[A dificuldade em encontrar trabalho] levou muitas mulheres a recorrer aos serviços domésticos como alternativa de inserção ocupacional, especialmente na condição de diaristas”, aponta pesquisa da Codeplan.

Sujeitas a um ritmo de trabalho mais intenso, uma vez que fazem em um ou dois dias, a limpeza de toda a casa, as diaristas vivem o dia a dia do presente. Pois, o futuro não lhes está garantido. Maria Deusa Gomes Silva, 48 anos, é diarista há 20 anos. Ela afirma que vive a insegurança permanente da situação de trabalhadora informal ”As dificuldades são em relação a gente não ter nenhuma estabilidade. Se o pessoal viaja, você não ganha, você não tem férias, não tem 13º, não tem nada”, lamenta Maria.

Se por infortúnio ficar doente, Maria não tem a quem recorrer. Ao lhe perguntar o que ela faz quando se encontra enferma, ela desabafa ”Não faço nada, ou vou doente mesmo. Não tem nenhuma ajuda, não tem nenhum direito que posso recorrer.’.

O amanhã é algo distante para Maria. Ela teme pelo futuro sem aposentadoria”Pensar eu penso (em se aposentar). Mas, eu penso que não tem condição. Eu prefiro não pensar. Porque se parar pra pensar é frustrante”.

Apesar das incertezas do ofício, as  diaristas calculam que recebem 41,3% a mais que as empregadas com carteira assinada, por hora trabalhada. Por isso, há quem precise trabalhar com esse formato de contrato para pagar as contas. O valor do rendimento médio real por hora das mensalistas com carteira assinada passou de R$ 6,79 em 2016 para R$ 6,91 em 2017, e o das diaristas diminuiu de R$ 9,59 para R$ 9,26 no mesmo período, segundo mostra pesquisa da Codeplan.

Fé no caminho

Karla, que faz o trajeto interestadual diariamente de Santo Antônio do Descoberto para Brasília, sabe que o caminho é complicado na estrada  “É perigoso mas temos que trabalhar e ter fé (…) Ela preferiria atuar como mensalista ”Seria maravilhoso, pois daria um futuro melhor para os meus filhos. Mas, como não tem jeito, vai ser como diarista mesmo. Eu prefiro como mensalista porque é ‘fichado’, e garante o futuro dos meus filhos. Um futuro pra estudar e pagar uma faculdade que talvez queiram fazer. Trabalhando mensalmente eu poderia ajudá-los porque o salário seria uma garantia. Como diarista não dá muito, pois sempre falta algo e você tendo hoje o dinheiro, amanhã talvez não tenha”, explica Karla.

A vida de Karla é a realidade de milhares de diaristas no Brasil e no DF. Assim como todo profissional, elas aspiram pelas estabilidades em meio a um mundo incerto, que é o mercado de trabalho. Para Samara Regina, diretora do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos o Projeto de Lei 7242/2014, criado em 2009 foi criado para formalizar o trabalho das diaristas. Ainda hoje o projeto tramita na Câmara. A diretora ainda explica que as diaristas no momento são regidas pela Lei Complementar 150/2015. E que, para que tenham a carteira assinada, precisam trabalhar até três dias na semana para o mesmo empregador – o que não é realidade da grande maioria das diaristas brasileiras, como é o caso de Maria e Karla.  

Legislação

No dia 2 de abril de 2019, a PEC das Domésticas completou seis anos desde sua aprovação. A emenda constitucional garante a equiparação dos direitos dos trabalhadores domésticos ao dos demais empregados. Porém, dados apontam que 70% desses empregados ainda estão na informalidade.

Desde outubro de 2015, quando a lei entrou em vigor, as domésticas sem carteira assinada passaram de 4,2 milhões para 4,4 milhões, segundo dados do IBGE. O recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), pagamento de hora-extra, seguro saúde e jornada de 44 horas semanais são algumas das obrigatoriedades da PEC.

Um Boletim Especial da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) aponta que diante das alterações do comportamento geral da economia – crise na economia – e das recentes mudanças na legislação trabalhista dos serviços domésticos, houve uma maior migração de pessoas para o trabalho doméstico e para a informalidade. Estima-se que existem cerca de sete milhões de trabalhadoras e trabalhadores domésticos no Brasil, mais do que em qualquer outro país do mundo, segundo dados de 2018 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Por Júlia Morena

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira