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A mãe da Estrutural: como uma dona de casa superou até incêndio para ajudar comunidade mais carente do DF

Era uma tarde comum para Maria de Jesus Pereira de Souza, 32 anos. Ao amamentar a filha mais nova, de nove meses de vida, ela senta no sofá da creche e me recebe. Os olhos dela eram tão fixos nos meus, que desisti de fazer anotações. Quis ir além do que as palavras diziam. “Foi difícil, mas eu levantei! E não me deixei abater”. Hoje, Maria é responsável pela creche Alecrim na Estrutural e explica como a vida a encaminhou para essa jornada. A piauiense foi trazida pelos pais para Brasília aos nove meses e morou por muito tempo com os nove irmãos. Aos 12 anos, começou a trabalhar no lixão. Dava para sobreviver com o dinheiro que conseguia lá, mas sabia que era pouco e por isso não desistiu de estudar. Morava na cidade Estrutural, em Brasília, e tinha que caminhar uma hora e meia até chegar à escola, que fica no Guará. Na época, não tinha ônibus onde morava e, mesmo que tivesse, o dinheiro era pouco para pagar passagem todos os dias. Maria tinha dois caminhos para escolher: ou estudava e melhoraria de vida, ou ia para o subterrâneo das drogas. “Eu sabia que o fim do caminho das drogas era a morte. Mesmo que aceitasse isso, eu nunca tive jeito para essas coisas”.

A estrutura da creche não é a mais adequada para a quantidade de crianças, mas é uma das poucas entidades na cidade Estrutural. Com o fechamento do lixão (em janeiro de 2018) a situação piorou. Aumentou o número de meninos e meninas, principalmente no fim da tarde, quando está na hora da janta. À noite, as voluntárias fazem sopa e distribuem pães para que eles não fiquem com fome até o dia seguinte, uma situação bem difícil.

Aos 18 anos, casou-se e, aos 19, teve o primeiro filho, Mauricio Eduardo. Maria tem dificuldades para relatar tudo o que aconteceu. Engole a seco as próprias palavras. Ainda escuta a voz dele chamar “mamãe”. Às vezes, ela acorda no meio da noite e pensa que ele está ali no berço, quando na verdade não está desde um ano e seis meses. “Ele morreu porque tinha problema no coração, teve três paradas cardíacas. Até hoje eu não consegui superar isso”. Aos 23 anos, teve a segunda filha, Helen, que também apresentou problemas de cardiopatia e precisou de uma cirurgia com quatro meses de vida. No pós-operatório da filha, Maria teve que deixar o lixão. Começou a ficar em casa e olhar os filhos das vizinhas que iam trabalhar. Foi então que o marido saiu para o trabalho e não voltou mais. Morreu de infarto fulminante.

Nessa época, Maria já cuidava de 32 crianças e não teve tempo para viver o luto. Ela considera isso uma lembrança boa porque evitou outros problemas. “Foi muito difícil, mas eu levantei e não me deixei abater. Eu tinha um foco, criar minha filha”, destaca. A renda que Maria tinha, vinha da pensão na qual teve direito após a morte do marido. A ex-catadora começou a ter complicações de saúde. Portadora da doença de Chagas (doença normalmente transmitida pelo mosquito Barbeiro), tem tendinite nos dois ombros e diabetes. Devido ao trabalho repetitivo no lixão, perdeu 30% do movimento do braço esquerdo, afirma. Mesmo com todas essas situações, nunca abandonou o trabalho. Ainda que quisesse, ela não conseguiria deixar as crianças. O apego está no olhar de Maria, ela diz que se fortalece a cada dia ao cuidar dos pequenos e fazer a diferença na comunidade.

Com o passar do tempo, tudo o que Maria queria era reconstruir a vida. Casou-se com Wenceslau, com quem teve mais duas filhas: Inara, com dois anos de idade, e Aila, de dez meses. “Essa minha nova família me deu a oportunidade de viver e ter forças para continuar na luta”. No início, o marido não quis aceitar o fato de Maria se dedicar integralmente à creche. Com o passar do tempo, compreendeu e percebeu a importância dela na vida das crianças. Atualmente, Wenceslau é um dos maiores colaboradores da associação.

Todo o trabalho é voluntário e o material fruto de doações. Quando falta algo, a venda de biscoitinhos caseiros de coco, que derretem na boca, e os bazares geram recursos financeiros. O nome da instituição, Alecrim, se formou a partir da sigla Associação Luciano de Esporte, Cidadania, Recreação, Interação e Motivação. Uma homenagem que Maria fez para o primeiro marido. Hoje, a entidade atende 87 meninas e meninos, e conta com três salas: uma para crianças de três a cinco anos, outra para dormir e um berçário, onde ficam os bebês de quatro meses a dois anos. Há dois banheiros infantis. A cozinha tem um fogão, geladeira, forno e um espaço para armazenar os alimentos.

Em um sexta-feira, a creche recebeu uma conta de água de R$ 17 mil. “Essa foi a situação que não consegui me controlar, desabei na frente da minha equipe”. Maria fez uma reunião com as voluntárias e falou que desistiria da creche porque não tinha condições de arcar com aquele prejuízo. O combinado foi de que, no início da semana, ao deixar as crianças, os pais fossem avisados do fechamento da instituição.

Na segunda-feira seguinte, Maria chegou mais cedo. Antes do horário da entrada, uma mãe bateu no portão. “Ela estava desesperada, gritando. Fui abrir e ela me pediu para dar um leite para uma criança que estava desmaiada. Quando me aproximei, a mãe me falou que a última refeição tinha sido na sexta-feira antes de ir embora da creche”. Ao ouvir esse relato, não há como não se emocionar. Maria disse que, naquele dia, decidiu que podia acontecer o que fosse, mas ela não fecharia a creche de forma alguma. Dividiu o valor em 23 parcelas, que acabam em julho de 2018. Essa dívida se deu porque alguns voluntários ofereciam, como ajuda, o pagamento da conta de água. Mas algumas vezes, não pagaram e não avisaram, o que gerou multas que se acumularam nesse valor.

A situação de maior apuro da creche foi o incêndio que ocorreu em 7 de fevereiro deste ano. As voluntárias colocaram o almoço no fogo e, de repente, um barulho alto veio da cozinha. Era como o estouro de uma panela de pressão, mas na verdade foi bem pior: o forno tinha explodido. “Naquele momento as monitoras foram muito profissionais, tiraram todas as crianças brincando para que elas não se assustassem. Eu não tive medo de entrar no local, a minha maior preocupação era saber se todos tinham conseguido sair. Graças a Deus, não houve nenhum ferido, mas o cômodo ficou completamente destruído. Em uma semana, a cozinha foi reconstruída com doações de pessoas que se mobilizaram com a situação, divulgada na mídia, e hoje está melhor do que antes”.

Na creche, chegam muitos relatos de violência, principalmente de caráter sexual e que Maria é quem toma as providências para a denúncia. “A maioria dos abusos acontecem à noite. E com certeza é um dos fatores mais preocupantes para mim, porque quando estão em casa, eu não estou lá para proteger. O monstro sempre tem cara de anjo! Converso com as mães para tomarem cuidado com quem deixam entrar em casa”. Já houve caso do pai ter abusado da filha e Maria ter que levar a vítima ao Instituto Médico Legal (IML) para realizar exames e denunciar o crime. A comunidade ficou sabendo do caso e não perdoou o pai, que morreu antes da Polícia Civil chegar. A mãe era conivente com a situação e foi presa. A menina teve que ir para abrigo. “Com fé em Deus, ela há de encontrar uma família maravilhosa, que dê para ela o que faltou: amor de verdade”.

Ela acredita que “a creche é lotada por falta de instrução. Algumas mães têm apenas 11 anos, são meninas ainda, que não estavam preparadas para lidar com filho”. Maria ajuda no que pode, mas sem recursos fica cada vez mais difícil lidar com os problemas da comunidade. “Quando as crianças estão comigo, eu tento orientar da melhor forma possível, mas o mundo das drogas, do crime, e da violência é muito grande. A parte que mais me dói é ter que enterrar um deles. Já perdi as contas de quantas vezes peguei uma certidão de nascimento e fui fazer o reconhecimento. O pessoal do IML já me conhece”. Maria se sente decepcionada quando pensa que os que foram para o caminho errado poderiam ter outro futuro. No início havia cobrança pessoal, ela se perguntava onde errou com os que se desviaram. Concluiu que a desestruturação familiar influencia na vida das pessoas.

A creche Alecrim foi registrada em 28 de dezembro de 2013. A associação é sem fins lucrativos e não recebe ajuda governamental. Todo o serviço é voluntário. Em um levantamento feito por uma das colaboradoras, foram contabilizados 3,5 mil cadastros.  Em alguns casos de crianças em situação de vulnerabilidade, a responsável pela entidade tem a guarda provisória ou compartilhada. O fato de ser importante para maior parte da comunidade e por cuidar de crianças, torna o local um dos mais respeitados da cidade.

Apesar das dificuldades, a vontade de ajudar a quem precisa é maior que qualquer desafio. “Meu maior sonho é ter uma sede própria para a instituição, o espaço que usamos é alugado por R$ 1,8 mil e todo mês precisamos de campanha para adquirir fundos. Já tentei parar com esse trabalho, mas não consegui. É algo mais forte do que eu. Se eu pudesse, transformaria a creche em abrigo para não ver criança sofrendo em casa à noite”. Maria sonha em um dia fazer faculdade de serviço social. “Vai ser mais uma forma de agradar minha comunidade”.

Por Isabela Nóbrega